Biografia

José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos – José Afonso, ou o Zeca Afonso para a família, para os amigos, e para muitos – nasce a 2 de Agosto 1929 em Aveiro, Portugal.

A infância e adolescência, marcada pelas separações familiares sempre que o pai, Juiz, iniciava funções noutra colónia Portuguesa, é repartida por Portugal, Angola e Moçambique. Faz o liceu e a Universidade em Coimbra onde, a partir de 1940, integra diversos grupos de cantores estudantes acompanhados à guitarra portuguesa – o fado de Coimbra – que, deambulando pelas ruas da cidade, oferecem serenatas em frente à janela das raparigas homenageadas. Integra como cantor várias digressões da Tuna e Orfeão Académicos a Angola e Moçambique, onde impressiona pelo timbre notável e pela sua interpretação muito própria do fado clássico. 

Em 1953, já casado e com dois filhos, José Afonso grava os seus dois primeiros discos na tradição do fado de Coimbra, incluindo o “Fado das Águias” da sua autoria. Em 1958 grava o disco “Baladas de Coimbra”, que marca o afastamento do fado de Coimbra e o início de uma fase musical de criação de baladas e canções de grande densidade melódica e poética, acompanhadas à guitarra clássica, como “Menino d’Oiro”. Esta nova música exprime uma frescura inovadora que logo rasga o panorama convencional e atrai a atenção da PIDE, a polícia política do estado que vigia os opositores ao regime pró-fascista de Salazar. Em 1961 grava “Balada de Outono” e termina o curso em Histórico-Filosóficas com uma tese sobre J.P.Sartre e o existencialismo.

Entre 1956 e 1964, José Afonso percorre o país como professor, leccionando em várias escolas e liceus do centro, Alentejo e Algarve. A PIDE segue-lhe o rasto. José Afonso inteira-se em cada um desses locais do universo familiar e sócio-económico dos alunos, estabelece relações de amizade marcantes. E bebe a música popular de raíz etnográfica, muito usada nas aldeias e meios rurais, como os cantares durante o trabalho, quase sempre por mulheres, repletos de uma poesia alusiva à natureza e aos ciclos das colheitas, aos bichos e bruxas, às superstições e estórias que povoam essa cultura, e de grande riqueza rítmica (sobretudo nas Beiras). O cancioneiro português passa assim a integrar a essência da obra de José Afonso.

Em 1963 grava “Os vampiros”, então logo proibida, que marca definitivamente a ruptura com a tradição bolorenta do fado clássico coimbrão, irrompendo provocatoriamente pela paz podre na alvorada da guerra colonial. O regime envia os soldados portugueses para lutar contra os movimentos de libertação em Africa.  Apesar da censura, “Os Vampiros” propaga-se por todo o território português, dentro e fora e torna-se voz de uma crescente revolta perante o endurecimento do regime, que prende e tortura qualquer opositor. É uma canção de urgência, tão actual na altura como o é hoje, que fala de tortura, imperialismo, exploração e dos seus mandatários.

Em 1964 viaja com a segunda mulher (de quem terá mais dois filhos) para Moçambique para ensinar. Na Beira reencontra o irmão João Afonso, com quem partilha intensamente a literatura, o cinema e a música contemporânea. Os dois partem em tardes de exploração para o bairro pobre e exclusivamente negro do Xipangara, falam com os moradores, gravam e filmam. Soa por toda a parte o som da Radio com a música dos townships do Soweto, de Miriam Makeba, mas também o dos marimbeiros da Zavala – criados dos vizinhos em frente – que tocavam incessantemente após o trabalho, reunidos com as famílias nas traseiras. Estas influências marcam definitivamente a evolução musical (e também política) de José Afonso.

Cria uma série de canções para a peça de teatro de Brecht “A excepção e a Regra”, pelo Teatro Amador da Beira, que consegue a sua estreia com aprovação da PIDE. Estas canções, que serão publicadas mais tarde dispersas por vários LPs (“Eu vou ser como a toupeira” de 1972, “Coro dos Tribunais” de 1974, “Enquanto há força” de 1978), transportam a marca politizada da história do oprimido e do opressor. A PIDE força José Afonso a abandonar Moçambique.

De regresso a Portugal, instala-se em Setúbal nos finais de 1967 como professor. O país encontrava-se em ebulição social e política e José Afonso é confrontado  com uma vaga de expectativas quanto à sua pessoa/artista comprometido politicamente. Ainda responde a uma entrevista logo à sua chegada no cais de Lisboa que vem para ser professor, mas tornar-se-ia no arauto das esperanças de todo um povo, no trovador-poeta que canta o melhor e o pior de um país, no compositor genial que documenta a história no espaço português dos anos 50 até aos 80, que esculpe uma world music muito antes do termo surgir, cruzando épocas, tradições e influências desde a música tradicional portuguesa à música tradicional e popular africana, inovando, com amigos, músicos e companheiros de estrada, álbum após álbum:

Em 1968 edita o seu segundo LP “Cantares do Andarilho” para a editora Orfeu, iniciando um percurso de 14 anos sob o selo da editora de Arnaldo Trindade, e “Contos Velhos Rumos Novos” (1969), dois anos marcados pelas lutas estudantis em Coimbra e proletárias na margem Sul, onde José Afonso participa e actua frequentemente.

Seguem-se quatro sessões de gravações internacionais para novos LP’s em estúdios de referência à época  –  “Traz Outro Amigo Também” (1970) em Londres, “Cantigas do Maio” (1971) em Paris, “Eu Vou Ser Como a Toupeira (1972) em Madrid, e “Venham Mais Cinco” (1973) de novo em Paris, já depois de ser preso pela PIDE em Abril desse ano.

Em Março de 1974, no Encontro de Música Portuguesa num Coliseu dos Recreios à pinha, é proibido de cantar (como outros) pela PIDE, mas o concerto termina com a música  “Grândola, Vila Morena” cantada em uníssono. A 25 de 1974, a “Grandola” é a senha radiofónica que confirma a revolução militar despoletada pelo MFA para derrubar o regime. Nesse ano, José Afonso ainda edita “Coro dos Tribunais”, mas o período que se segue é de intensa participação cultural e política, com inúmeros concertos e sessões. 

Voltam as gravações em finais de 1976 com “Com as Minhas Tamanquinhas” e depois “Enquanto Há Força” (1978), álbuns marcadamente políticos e sociais mas também de grande pujança musical, num período de ressaca da revolução e da ‘normalização democrática’ imposta após o contra-golpe de 25 de Novembro. Em 1979 edita “Fura Fura” e mais tarde “Fados de Coimbra e Outras Canções” (1981), que dedica ao Pai, onde revisita essa tradição musical e a sua própria génese criativa. 

Durante estes anos, José Afonso aposta progressivamente numa maior profissionalização do apoio musical, integrando no seu grupo e nas gravações de estúdio músicos que viriam, eles também (e incentivado por ele), a tornarem-se referências da música popular portuguesa (Fausto, Vitorino, Júlio Pereira, Janita Salomé).

Em 1982, já diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica, actua em salas emblemáticas em Bruxelas, no Théâtre de la Ville em Paris e no festival Printemps de Bourges, culminando esta última série de espectáculos no concerto Ao Vivo no Coliseu, a 29 de Janeiro de 1983, editado em disco duplo mais tarde nesse ano.

Grava “Como se Fora seu Filho” (1983), um disco-testamento que termina de facto em “Galinhas do Mato” (1985), onde José Afonso já tem de dirigir participações de cantores convidados, sob a produção musical de José Mário Branco, Júlio Pereira e Fausto.

José Afonso morre em Setúbal, a 23 de Fevereiro de 1987.  Mais de 30 000 pessoas saíram à rua no seu funeral para prestar homenagem a uma das maiores figuras da música portuguesa, cujas letras e músicas permanecem jovens, actuais e relevantes.

A 25 de Abril de 2021, o single “Coro de Primavera”, do álbum “Cantigas do Maio”, marca um novo percurso de edições da obra de José Afonso.